No romance de ficção científica de H.G. Wells de 1897, “O Homem Invisível“, o protagonista inventa um soro que torna as células de seu corpo transparentes ao controlar como elas dobram a luz.
Mais de 100 anos depois, cientistas descobriram uma versão real dessa substância: um corante alimentício comumente usado pode tornar temporariamente a pele de um camundongo transparente, permitindo que os cientistas vejam o funcionamento de seus órgãos, de acordo com um novo estudo publicado na última quinta-feira (5) na revista Science.
A descoberta pode revolucionar a pesquisa biomédica e, se for testada com sucesso em humanos, ter amplas aplicações na medicina e na saúde, como tornar as veias mais visíveis para coleta de sangue.
Os pesquisadores tornaram a pele no crânio e no abdômen de camundongos vivos transparente ao aplicar uma mistura de água e um corante amarelo chamado tartrazina. A pele dos camundongos foi raspada antes da aplicação da solução e a lavagem da solução restante reverteu o processo, que não causou danos aos animais.
“Para aqueles que entendem a física fundamental por trás disso, faz sentido; mas se você não está familiarizado com o conceito, parece um truque de mágica”, disse Zihao Ou, autor principal do estudo e professor assistente de física na Universidade do Texas em Dallas, em uma declaração.
Moléculas de corante que absorvem luz
A “mágica” utiliza conhecimentos da área de óptica. Moléculas de corantes que absorvem luminosidade aumentam a transmissão de luz pela pele, suprimindo a capacidade do tecido de espalhar o brilho.
Quando misturado com água, o corante modifica o índice de refração — uma medida de como uma substância desvia a radiação — da parte aquosa do tecido, para combinar melhor com o índice de proteínas e gorduras presentes na pele. O processo é semelhante à dissipação de uma nuvem de neblina.
“Combinamos o corante amarelo, que é uma molécula que absorve a maior parte da luz, especialmente a azul e ultravioleta, com a pele, que é um meio de dispersão”, disse Ou, que conduziu o estudo como pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Stanford, na Califórnia.
“Individualmente, essas duas coisas bloqueiam a maior parte da luz que passa por elas”, disse ele. “Mas quando as colocamos juntas, conseguimos alcançar a transparência da pele do camundongo.” Uma vez que o corante se difundiu completamente na pele, ela se tornou transparente.
“Leva alguns minutos para que a transparência apareça,” afirmou Ou. “É semelhante ao funcionamento de um creme facial ou máscara: o tempo necessário depende da velocidade com que as moléculas se difundem na pele.”
A equipe experimentou com peitos de frango antes de realizar os trabalhos com animais vivos.
Nos camundongos, os pesquisadores foram capazes de observar vasos sanguíneos diretamente na superfície do cérebro através da pele transparente do crânio. Os órgãos internos dos camundongos eram visíveis no abdômen, assim como as contrações musculares que movem o alimento pelo trato digestivo.
As áreas transparentes assumem uma cor alaranjada, disse Ou, semelhante à do corante alimentício.
O corante utilizado na solução é comumente conhecido como FD&C Amarelo nº 5, certificado para uso pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA). Esse corante sintético é frequentemente usado em salgadinhos de cor laranja ou amarela, coberturas de doces, sorvetes e produtos assados.
No entanto, um estudo de 2021 do Escritório de Avaliação de Perigos à Saúde Ambiental da Califórnia associou o corante a dificuldades comportamentais e diminuição da atenção em crianças. Um projeto de lei estadual, se sancionado, proibiria o uso desse corante alimentar em refeições servidas em escolas públicas da Califórnia.
Ou destacou que é importante o corante ser biocompatível — ou seja, seguro para organismos vivos. “Além disso, ele é muito barato e eficiente; não precisamos de muito para que funcione”, afirmou.
Possíveis aplicações biomédicas para humanos
Os pesquisadores ainda não testaram o processo em humanos, e não está claro qual seria a dosagem ou o método de aplicação necessário. A pele humana é cerca de dez vezes mais espessa do que a de um camundongo, segundo os pesquisadores.
“Pensando no futuro, essa tecnologia poderia tornar as veias mais visíveis, facilitando o procedimento de coleta de sangue ou administração de fluidos por agulha — especialmente em pacientes idosos com veias difíceis de localizar”, disse o autor sênior Guosong Hong, professor assistente de ciência dos materiais em Stanford, por e-mail.
“Além disso, essa inovação poderia auxiliar na detecção precoce de câncer de pele, melhorar a penetração de luz para tratamentos de tecidos profundos, como terapias fotodinâmicas e fototérmicas, e tornar a remoção de tatuagens a laser mais simples.”
Christopher Rowlands, professor sênior no departamento de bioengenharia do Imperial College London, disse que ficou “chateado” por não ter tido o mesmo insight da equipe liderada por Stanford, que se baseou no princípio físico amplamente estudado e de longa data chamado relações de Kramers-Kronig: quando um material absorve muita luz em uma cor, ele desvia mais a luz em outras cores.
“É totalmente óbvio quando alguém aponta, mas ninguém pensou nisso por mais de 100 anos”, disse Rowlands, que não esteve envolvido no estudo, mas coassinou um comentário publicado juntamente com a pesquisa.
Junto com Jon Gorecki, físico óptico experimental da mesma instituição, que também não participou do estudo, Rowlands escreveu que essa abordagem oferece uma nova maneira de visualizar a estrutura e a atividade de tecidos e órgãos profundos em um animal vivo de maneira segura, temporária e não invasiva.
“Simplesmente funciona. Você esfrega isso em um camundongo, e pode ver o que ele comeu no café da manhã. É tão poderoso”, acrescentou Rowlands.
Rowlands e Gorecki explicaram que os métodos existentes para tornar tecidos transparentes utilizam soluções que causam efeitos colaterais, como desidratação e inchaço, podendo alterar a estrutura do tecido. No entanto, a tartrazina foi usada em baixa concentração, e seus efeitos foram facilmente revertidos, o que pode facilitar o estudo prolongado de processos biológicos em animais vivos, escreveram.
A dupla observou que a descoberta é um exemplo de a vida imitar a arte, com a solução de corante ecoando o soro imaginado em “O Homem Invisível”.
“O protagonista (na história) inventa um soro que torna as células de seu corpo transparentes ao controlar precisamente o índice de refração para corresponder ao do meio circundante, o ar”, escreveram.
“Cento e vinte e sete anos depois… corantes biocompatíveis tornam tecidos vivos transparentes ao ajustar o índice de refração do meio circundante para corresponder ao das células.”
No entanto, Ou e Hong disseram que um camundongo totalmente invisível ainda é improvável: a abordagem atual não pode tornar os ossos transparentes.
“Até agora, testamos apenas tecidos moles, incluindo cérebro, músculo e pele. Não investigamos muito tecidos duros, como ossos, então não tenho certeza se seríamos capazes de tornar o camundongo completamente invisível”, disse Ou por e-mail.
“No entanto, um camundongo parcialmente transparente já permitirá inúmeras oportunidades de pesquisa para responder a perguntas sobre desenvolvimento, regeneração e envelhecimento.”
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