Mulheres protestaram em diversas cidades do país nesta segunda-feira (12) contra trecho da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181/2015 que pode abrir a possibilidade de proibir todas as formas de aborto no país, inclusive dos casos considerados legais.
A PEC 181 tratava inicialmente somente da ampliação da licença-maternidade para mães com bebês prematuros. Por 18 votos a um, a comissão especial da Câmara que debatia o tema aprovou o parecer do relator, favorável à extensão da licença. No entanto, o relator, deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), acrescentou uma mudança no texto: de que os direitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da vida e igualdade de todos perante a lei devem ser considerados “desde a concepção”, e não somente após o nascimento.
Para partidos de oposição e integrantes do movimento femininista a mudança foi uma manobra das bancadas evangélica e católica para reforçar a proibição do aborto no país. Atualmente, o aborto é permitido quando há risco à vida da gestante, se a gravidez for resultado de estupro ou de feto anencéfalo.
A proposta irá para análise no plenário da Câmara dos Deputados.
São Paulo
Na capital paulista, a passeata ocorre na Avenida Paulista. Desde as 18h, manifestantes, majoritariamente mulheres, começaram a se concentrar no vão-livre do Masp e saíram em caminhada às 19h15.
Para a aposentada Roseli Flori, a PEC é um retrocesso nos direitos das mulheres. “Temos que defender conquistas que demoramos muito para conseguir. Temos que defender isso para as futuras gerações. Além de ser um retrocesso, ela é uma destruição das conquistas das mulheres nesses anos todos, a partir da década de 60, quando as mulheres queimaram os sutiãs e que nós tomamos consciência de que homens e mulheres são iguais. Eu sou contra todas as formas de opressão feminina”, disse.
“Lutar pelo feminino e esclarecer as futuras gerações é o nosso dever. Eu já não tenho mais idade para gerar um filho, mas as meninas e mulheres que sofrem isso, sofrem estupro, nessa sociedade que está regredindo na sua civilidade, elas são os principais alvos, temos que protegê-las. Poderia ser minha filha, poderia ser minha neta”, afirmou.
Os manifestantes saíram do Masp e caminharam pela Avenida Paulista e pela Rua da Consolação até chegarem à Praça Roosevelt, às 21h15, no centro da cidade. Os participantes carregaram faixas e bandeiras pedindo a legalização do aborto e a defesa dos direitos das mulheres e, ao longo da passeata, gritaram palavras de ordem como “o corpo é nosso, é nossa escolha, é pela vida das mulheres”.
O protesto foi finalizado com um jogral em que os manifestantes simularam uma votação na Câmara dos Deputados. “A partir de agora, nós somos todas deputadas federais. Agora nós vamos colocar em votação a legalização do aborto. Deputadas, prestem atenção. Todas as deputadas que aprovam a legalização do aborto levantem a mão e deem um grito”, disseram em jogral. Após a fala, todas as pessoas presentes levantaram a mão e gritaram, em aprovação simbólica da descriminalização do aborto.
Rio de Janeiro
Aos gritos de “O corpo é nosso, é nossa escolha”, mulheres protestam na Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Para o movimento feminista, a mudança constitucional é uma manobra da bancada religiosa que dá margem para criminalizar o aborto em qualquer circunstância.
“Essa manobra para inserir uma alteração na Constituição colocando a inviolabilidade da vida desde a concepção vai afetar diretamente os direitos que temos hoje de aborto legal. Não podemos retroagir nossos direitos a esse ponto”, disse Iara Amora, integrante da Frente Estadual contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto.
O movimento feminista apelidou a manobra de “Cavalo de Troia”, em referência ao cavalo de madeira que se tornou símbolo da vitória dos gregos sobre troianos na Guerra de Troia. Isso porque o trecho que abre a possível brecha foi incluído em uma PEC que, originalmente, discutia a ampliação da licença-maternidade para os casos de mães de bebês prematuros.
“Não dá para decidir sobre a vida das mulheres sem ouvir as mulheres, sem a participação ampla das mulheres, sem representação justa dentro do Congresso. Em uma comissão com 19 deputados, só uma era mulher e ela foi a única que votou contra essa barbaridade”, disse Adriana Mota, representante da Articulação de Mulheres Brasileiras, em alusão à deputada Érika Kokay (PT-DF), única que votou contra a PEC na comissão.
Brasília
Dezenas de pessoas se reuniram em frente ao Congresso Nacional com cartazes de apoio à legalização do aborto. “Estupro é crime, aborto é direito”, dizia uma das faixas exibidas. Além do texto que tramita na Câmara, os senadores também podem colocar em votação outra proposta: a PEC 29/2015, que inclui na Constituição o termo “inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”.
Além discursos em megafones, os manifestantes também entoaram palavras de ordem, como “Direito ao nosso povo. Legalizar o aborto”. No gramado, que fica em frente aos prédios da Câmara e do Senado, o grupo, formado pela maioria de mulheres, se reuniu em círculo e cantou uma ciranda, com o refrão: “Companheira, me ajuda, que eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”. Logo depois, se dispersaram.
O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sinalizou que propostas com a intenção de restringir o aborto não deverão avançar na Câmara
Opiniões
A proposta divide opiniões entre segmentos da sociedade. Para o coordenador do Movida, movimento de Fortaleza, Fabiano Farias de Medeiros afirma que a PEC não criará uma imposição às mulheres. “A proposta promove um um estado de análise muito mais profundo sobre a vida do bebê. Há, no país, uma tendência ideológica muito forte, que vai acima do direito de vida”, diz. “Cria-se um discurso, uma dicotomia de que estão favorecendo a criança. Não, o Estado tem que dar todo o apoio, para que o estupro não venha a acontecer. Mas, acontecendo, se uma vida foi gerada, não pode ser assassinada. Estupro é hediondo, assassinar uma criança também é terrível”, diz o coordenador, que classificou como arbitrário parecer favorável da Procuradoria-Geral da República para o aborto para grávidas com vírus da Zika.
Já a defensora pública Letícia Furtado diz ser incontestável a carga de “moralismo de uma sociedade machista. “A gente vive numa sociedade patriarcal, machista, e isso reflete no sistema legislativo e também na questão do aborto. Na hora de tratar uma mulher que passa por uma situação em que entende que o melhor é o aborto, vai ser julgada com base nisso”.
Ela conta que, há alguns meses, representou uma mulher que prestou queixa contra o ex-companheiro que a ofendia verbalmente. “Uma das ofensas era ‘criminosa’, porque ela tinha abortado. De todas as ofensas que proferiu durante a relação, era a que mais mexia com ela. Lembro como isso a magoou. O aborto vem atrelado à muita culpa e muita dor.”
Dados
A Pesquisa Nacional de Aborto 2016, realizada pelo Anis Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB), aponta que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos terá abortado ao menos uma vez. A maior incidência foi observada entre aquelas com menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, moradoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgados no final de setembro, em todo o mundo foram registrados 55,7 milhões de abortos de 2010 a 2014. Os países em desenvolvimento, conforme o levantamento, concentraram 97% (24,3 milhões) dos 25,1 milhões de abortos inseguros.
Na América Latina, somente quatro dos 21 países permitem o aborto na rede pública de saúde: Chile, Uruguai, Guiana e México.
Texto atualizado às 21h50 para acréscimo de informações sobre a manifestação em São Paulo